Quais são os erros mais comuns na hora de responder o que é marketing, inclusive vindo de profissionais com grande experiência na área?
Parece básico, mas definir conceitos não é simples e vejo muitos profissionais bons definirem marketing a partir de uma prática e não um conceito. Seria, por exemplo, definir metodologia ágil de gestão de projeto como sendo gestão de tarefas num kanban. No caso do marketing, o conceito é confundido com os 4 Ps – Produto, Praça, Preço e Promoção (farei conteúdo sobre isso me breve). Os 4Ps são uma metodologia de trabalho de marketing, ou um framework de trabalho, e não define o que é marketing.
Outro erro comum é buscar uma definição a partir de autores específicos. Já recebi comentários aqui me corrigindo quando afirmei que marketing é uma ciência social aplicada, falando que “marketing é uma economia social aplicada pelo enquadramento do Kotler”. O Kotler é uma grande referência na área, mas é importante buscarmos referências que sejam um consenso entre várias pessoas da área em vez de uma única pessoa.
Assim como a PMI é uma referência geral para a gestão de projetos, existe uma referência padrão para o marketing, que é o AMA (American Marketing Association). No entanto, aqui nesse website, trabalhamos explorando o que a pesquisa científica tem a nos dizer sobre o assunto e há críticas bem interessantes quanto a definição de marketing da AMA.
Marketing é uma função organizacional e um conjunto de processos para criar, comunicar e entregar valor aos clientes e para gerenciar o relacionamento com os clientes de uma forma que beneficie tanto a organização quanto as partes interessadas. (AMA, 2004)
Marketing é a atividade, conjunto de instituições e processos para criar, comunicar, entregar e trocar ofertas que tenham valor para consumidores, clientes, parceiros e sociedade em geral. (AMA, 2017)
Eu particularmente sinto muita falta de algo que indique que o marketing precisa garantir a entrega da oferta na definição mais recente. Apesar da ética estar em “ofertas que tenham valor”, acredito que o valor percebido é mutável. É responsabilidade do marketing garantir o controle da satisfação do cliente durante a jornada de consumo para controlar e gerir a entrega de valor. Essa exigência eliminaria muito produto e marketing fraudulento que vimos por aí, onde para vender é as mil maravilhas, mas o atendimento pós-compra é péssimo. Afinal, a definição genérica do que é marketing é o ponto de partida para definir e justificar a existência de profissionais de marketing nas organizações e seu papel de relevância para as pesquisas em administração.
Um segundo ponto é escolher a palavra “troca” de ofertas. A noção de troca é um pouco datada porque pode lembrar demais um cenário de mercado em que você tem um produto, a outra pessoa tem um outro produto ou dinheiro e assim há uma negociação de troca. Numa percepção atualizada, entendemos que a troca é uma das características de uma jornada de consumo. Quando usamos “consumo” em vez de “troca”, conseguimos abranger mais aspectos do que realmente acontece no mercado. Por isso, minha versão de o que é marketing estaria mais para:
E eu não coloco jornada pós-consumo porque entraríamos em discussões sobre logística reversa e questões sanitárias que a engenharia de produção e engenharia sanitária podem pautar melhor e fazer pressão legal sobre o marketing.
No mais, a definição atual da AMA contempla discussões sobre a limitação dos conceitos de marketing, então não tenho mais ressalvas. Para mais referências sobre possíveis outras difenições, seguem algumas:
O marketing tem duas facetas. Primeiro, é uma filosofia, uma atitude, uma perspectiva ou uma orientação de gestão que enfatiza a satisfação do cliente. Em segundo lugar, o marketing é um conjunto de atividades utilizadas para implementar esta filosofia.
(Cordeiro, et al., 2000, p. 6)
Um processo social pelo qual indivíduos e grupos obtêm o que precisam e desejam através da criação, oferta e troca livre de produtos e serviços de valor com outros.
(Kotler, 2000)
O processo de chegar ao público para construir o conhecimento da marca, atrair clientes e proporcionar-lhes uma experiência que criará a fidelidade do cliente.
(Ewell, 2003, p. 21)
Marketing é o processo de atingir metas corporativas por meio do atendimento e superação das necessidades do cliente melhor do que a concorrência.
(Jobber, 2003, p. 4)
Uma filosofia empresarial que considera a satisfação do cliente como a chave para o sucesso das negociações e defende o uso de práticas de gestão que ajudam a identificar e responder às necessidades do cliente.
(Hill & O’Sullivan, 2004, p. 2)
Marketing é o processo de planejar e executar a concepção, precificação, promoção e distribuição de ideias, bens, serviços, organizações e eventos para criar e manter relacionamentos que satisfaçam os objetivos individuais e organizacionais.
(Boone e Kurtz, 2004, p. 7)
O marketing consiste em atividades individuais e organizacionais que facilitam e agilizam relações de troca satisfatórias em um ambiente dinâmico por meio da criação, distribuição, promoção e precificação de bens, serviços e ideias.
(Dibb et al., 2006, p. 1)
O marketing é uma forma de envolvimento construtivo – uma função social e um conjunto sistémico de processos para criar, comunicar e entregar valor aos clientes e para gerir as relações com os clientes e a sociedade de forma a beneficiar os intervenientes locais e globais destes processos.
(Shultz, 2007, p. 293)
Marketing é um processo social pelo qual indivíduos e grupos obtêm o que precisam e desejam através da criação, oferta e troca gratuita de produtos e serviços de valor com outros.
(Kotler et al., 2009, p. 7)
Bem, para uma resposta rápida, você pode ficar então com a definição recente da AMA. Se você quer ir fundo no assunto e entender como o conceito de marketing é trabalhado na pesquisa científica, separei três artigos científicos sobre o tema:
- Artigo 1: Os conceitos podem ter vida própria
- Artigo 2: O conceito de Mkt no séc. 21
- Artigo 3: Sobre a definição de marketing
Fiz vídeo apresentando cada artigo individualmente para os mais curiosos e aqui estou juntando o que eles trouxeram para respondermos nossa questão.
O que poderia fomentar mudanças de conceito de marketing?
O marketing digital é revolucionário, o marketing digital é o novo marketing. Será? Poderia o marketing digital forçar uma mudança do que acreditamos ser o marketing?
Quem dita mudanças não são as instituições, nem grandes autoridades da área ou inovações tecnológicas porque ninguém detém o santo graal do marketing. É importante dar uma olhada na lógica por trás da definição do que é marketing (ouça a leitura dos artigos) e ver como ela se encaixa nas teorias emergentes, nas descobertas recentes da pesquisa e qual é a atuação dos profissionais no mercado. A partir dessa sinergia, ela deve fornecer as diretrizes para como os profissionais de marketing devem agir e serem entendidos nas instituições.
Grönroos (2006) aponta pesquisas que evidenciam uma decadência da autoridade dos profissionais de marketing no início dos anos 2000, indicando que poderia ser necessário rever conceitos:
- Em um estudo de grandes empresas dos EUA realizado por McGovern et al. (2004), os autores afirmam que menos de 10% do tempo das diretorias é gasto discutindo questões de marketing e relacionadas ao cliente.
- Em outra pesquisa nos EUA, quase metade dos CEOs entrevistados ressaltou que as organizações de marketing precisam de melhorias (Chief Executive, 2004).
- Um estudo da McKinsey na Europa ecoa essa visão e indica que mais de 50% dos CEOs entrevistados no estudo têm uma impressão negativa de seus profissionais de marketing (Cassidy et al., 2005).
- Outro estudo demonstra que, pelo menos nos EUA, os diretores de marketing não duram muito tempo no cargo (Welch, 2004).
Para o autor, repensar o conceito de marketing poderia ser uma forma de agir perante esse cenário desfavorável. Uma definição genérica atualizada seria uma forma de tornar os programas e atividades de marketing mais relevantes para todas as partes interessadas, ao invés de serem voltados principalmente para consumidores finais dos produtos.
Nos últimos 20 anos, a AMA atualizou seu conceito de marketing e as atribuições do marketing estão mais relevantes, porém essa mudança é extremamente recente. Os dados recentes da Deloitte indicam que as responsabilidades dos CMOs estão mais diversas e a presença de decisores com formação em marketing aumentou, mas veio com mais cobranças por resultados, tendo a pandemia como catalizadora das mudanças favoráveis ao marketing.
Com mais pessoas dependentes da internet, o marketing digital se tornou uma prioridade para a maioria das organizações, alterando as responsabilidades dos CMOs. Agora, 94,2% das empresas veem o marketing digital como a principal responsabilidade dos profissionais de marketing, em comparação com 86% em fevereiro de 2020. Além disso, os profissionais de marketing também passaram a ter responsabilidades adicionais, como análise de marketing (76,3% atualmente, em comparação com 66,7% em fevereiro de 2020) e inteligência competitiva (58% atualmente, em comparação com 47,3% antes da pandemia).
Os CMOs estão sendo cada vez mais convidados para participar de reuniões de liderança por CEOs ou CFOs, devido ao aumento de suas responsabilidades em várias áreas. Mais da metade dos profissionais de marketing afirmam participar de reuniões do conselho a maior parte do tempo. Porém, com o aumento dos gastos na área, os CMOs estão sob pressão para justificar seus orçamentos de marketing. Mais da metade dos líderes de marketing pesquisados relatam pressão dos CEOs e 45,1% citam pressão dos CFOs para comprovar o valor do marketing.
Acesse os dados do CMOs Survey
Mas então, como podemos revisitar conceitos do marketing com a ajuda da ciência?
Nos últimos 50 anos, o jeito de fazer marketing mudou bastante, se adaptando aos novos tempos e situações. Só que essas mudanças nas definições às vezes resultam em definições que, de certa forma, diluem o verdadeiro significado do marketing. Elas falam de coisas diferentes, mas esquecem de mostrar todo a amplitude da ideologia e do processo que compõem o marketing.
Uma boa definição de marketing precisa acompanhar essas mudanças todas que aconteceram. Ela também tem que ser feita de um jeito que fortaleça o papel do marketing nas empresas, mostrando como as coisas são de verdade. O marketing não é só sobre fazer coisas táticas, é sobre estar ligado à estratégia geral da empresa. Só que hoje, como vimos numa pesquisa recente, em muitas empresas, o marketing tá meio perdido.
Num artigo publicado na revista Marketing Theory, Tähtinen e Havila (2018) apresentaram uma contribuição relevante sobre como compreender, refletir e esclarecer a confusão conceitual que ocorre em campos emergentes de marketing. Os autores basearam-se no trabalho de Giovanni Sartori, um renomado cientista político, que introduziu diretrizes para o ‘método de análise conceitual’ (CAM) na década de 1970. Essas diretrizes podem ser aplicadas tanto na política comparativa – como nos conceitos de liberdade e democracia, por exemplo – quanto nas ciências sociais em geral (Collier e Gerring, 2009; Sartori, 1984).
Ao aplicar o método a um campo específico de pesquisa em marketing, Tähtinen e Havila (2018) demonstram que a existência de várias definições/descrições para o mesmo fenômeno de marketing causa confusão conceitual para teóricos de marketing e prejudica o desenvolvimento teórico.
O método CAM e as revisões de literatura centradas em conceitos, em geral, têm o potencial de esclarecer a confusão conceitual dentro de um campo de pesquisa, a fim de ‘ilustrar os significados e limites dos conceitos, assim como suas raízes e pressupostos teóricos’ (Tähtinen e Havila, 2018). No entanto, a suposição de que a confusão conceitual pode comprometer o desenvolvimento teórico de um campo parece adotar uma perspectiva um tanto linear e normativa em relação ao surgimento e evolução dos conceitos e definições da teoria de marketing.
Por isso, vale a pena termos uma postura flexível e buscarmos definições que façam sentido para nós mesmos como profissionais, ao mesmo tempo que olhamos atentos como andam as discussões contemporâneas dos conceitos em marketing.
Conceito de marketing numa perspectiva histórica
Uma imagem vale mais do que mil palavras e esse gráfico é exatamente isso, o melhor direcionamento do que é o marketing.
Esse gráfico foi retirado de um artigo que selecionou as definições mais relevantes do marketing nos últimos 50 anos e avaliou as diferentes perspectivas oferecidas por essas definições ao longo das décadas. Temas recorrentes presentes nas definições foram apresentados década por década, permitindo que os temas fossem resumidos e comparados.
Eu fiz um vídeo de quase 1 hora e sinto que ainda não esgotei tudo o que esse artigo poderia trazer, então a dica para os profissionais é ir de categoria em categoria tendo certeza que você sabe o que cada uma significa. Claro que não é para saber chutando, mas saber especificamente e que é vantagem competitiva no marketing? O que é buscar soluções para problemas no marketing? O que são as relações comerciais no marketing?
Depois desse passo, aí é interpretar a década e buscar entender o que foi mais proeminente em um determinado período, o que é uma tendência recente ou o que sempre esteve em pauta.
É nessa perspectiva histórica que encerro a discussão de hoje. Como uma última reflexão, vale a importância de respondermos o básico de um jeito bem profundo. A partir de agora, que estudamos as mudanças do passado e temos uma clareza suficiente de discussões-chave, teremos mais senso crítico para identificar o que é um preníncio de mudança e o que é mais um termo que muda de nome mas é mais do mesmo.
Referências
Grönroos, Christian. “On defining marketing: finding a new roadmap for marketing.” (2006)
Gamble, Jordan, et al. “The Marketing concept in the 21st century: A review of how Marketing has been defined since the 1960s.” (2011)
Patsiaouras, Georgios. “Marketing concepts can have a life of their own: Representation and pluralism in marketing concept analysis.” (2019)