Uma revisão científica sobre o no poo com vinagre e bicarbonato

Eu sou adepta ao no poo, uso sabão dissolvido em água há 3 anos e sou muito satisfeita. Porém, a difusão da “lavagem” com bicarbonato e vinagre nesse meio sempre me pareceu algo de lógica muito misteriosa… cheguei a fazer alguns testes, mas não me adaptei. Eis que resolvi ir mais a fundo sobre a mistura e tentar descobrir se há algum embasamento científico. Apesar dos relatos nos blogs serem positivos, em sua maioria, encontrei fontes contundentes de que a mistura pode ser facilmente prejudicial ao couro cabeludo.

O no poo ou low poo trata-se de abandonar o uso de shampoo convencional para lavar os cabelos com métodos alternativos ou até mesmo somente com água. O conceito é não utilizar agentes derivados de petróleo e outros químicos naturais que geram uma limpeza muito agressiva, desbalanceado os óleos naturais do cabelo. Esse efeito geraria a necessidade de mais lavagens e maior utilização dos produtos, induzindo o aumento do consumo. As alternativas e limpeza mais comuns são a diluição de bicarbonato e vinagre, shampoos artesanais em barra e certos tipos de condicionadores. A literatura do que pode e não pode no no poo e low poo é vasta pelos blogs, então aqui tratarei especificamente da química do bicarbonato e vinagre.

No poo é legítimo, porém precisamos pensar no nosso contexto

Minha opinião é de sempre optar pelo que é mais simples e natural, uma vez que a indústria mudou nosso estilo de vida introduzindo produtos sem total conhecimento de efeitos a longo prazo. Porém, me preocupa a difusão de práticas testadas somente por conhecimento popular na internet. Pouco se fala sobre o contraste do contexto desses conhecimentos (do tempo da vovó) para o estilo de vida urbano.

Viver na cidade é o contato diário com muitas pessoas, poluição, alimentação com agrotóxicos e substâncias que pouco entendemos do que se trata. Nosso corpo sintetiza e expele o que não é necessário. Então, será mesmo que podemos lavar o cabelo somente com água depois de 2h de transporte público numa São Paulo?

Mas o ponto é tomarmos mais cuidado com as receitas que circulam por aí. Se for o caso de mudar qualquer rotina, melhor buscar boas fontes de informação e não ser radical na transição. Pensar sempre de forma holística: se quer tomar banho somente com água, talvez seja melhor também mudar a alimentação, por exemplo.

O basicão para entender a composição dos cabelos

A fibra de cabelo é uma proteína, no caso, denominadas α-queratina. As α-queratinas se entrelaçam e interagem formando um filamento. Vários destes filamentos se alinham paralelamente ao comprimento do fio, formando macrofibrilas. Por fim, várias macrofibrilas são envolvidas por uma matriz amorfa, parte esta denominada córtex.

No córtex, há ainda água, lipídeos, grânulos de melanina e traços de metais. O córtex é revestido por 6 a 10 camadas de células sobrepostas como escamas, a cutícula. Esta, é uma barreira externa transparente com função protetora e reguladora de entrada e saída de água do fio de cabelo.

Os cuidados com a cutícula do cabelo irão se refletir nas pontas duplas, brilho e aparência geral do cabelo, por ser a camada mais externa do fio. O córtex é responsável por características como a forma e cor.

Como funciona a química da limpeza

Telecurso, facinho de entender, apesar das piadinhas dispensáveis. Para quem não tem medo de química, também vale uma aulinha rápida sobre saponificação.

As glândulas sebáceas situadas no couro cabeludo produzem óleo que envolve as cutículas. A maior parte da sujeira do cabelo se adere ao óleo, e portanto, a maneira mais eficaz de se lavar os cabelos é removendo a camada de gordura.

A gordura e a água tem polaridades opostas (e por isso não se misturam), sendo a gordura apolar e a água, polar. Dessa forma, o enxágüe com água não é suficiente para promover limpeza. Para que o enxágüe possa arrastar o óleo junto à água, é necessário o uso de uma molécula que interaja com a gordura (apolar) e com a água (polar). As moléculas com parte polar e uma parte apolar são chamadas de surfactantes. Elas são encontradas nos sabões, detergentes, xampus e condicionadores.

Diferentes tipos de surfactante são usados a depender de suas cargas, que possuem características específicas de limpeza e condicionamento dos fios. Por isso há uma variedade de produtos para cada tipo de cabelo – secos, oleosos, mistos, crespos, quimicamente tratados, etc.

O pH dos agentes envolvidos

O pH natural das fibras do cabelo é de 3.67, enquanto o couro cabeludo está entre 4.5 e 6.2, devido à produção de ácidos graxos pelas glândulas sebáceas. Essa é a barreira natural a vírus, bactérias e potenciais contaminantes. O pH da pele aumenta em proporção ao sabão usado. Então, para manter a naturalidade ácida, shampoos não podem ter pH maior de 5.5. Os surfactantes apresentam características básicas, com pH acima de 7. A maior parte dos shampoos atuais possuem ingredientes ácidos para ser compatível com o pH natural do cabelo.

Em soluções muito ácidas, as ligações de hidrogênio e interações eletrostáticas das cadeias de proteína dos fios são desfeitas, tornando-o quebradiço.

Em soluções levemente básicas, algumas ligações dissulfeto são rompidas e observa-se danos à cutícula, que se torna mais áspera, deixando o cabelo opaco e com pontas duplas ou múltiplas. Em meio muito básico, pode ocasionar em queda de cabelo (algo desejável se for um creme depilatório).

Como o vinagre e o bicarbonato atuam no cabelo

Agora que aprendemos onde está a sujeira e como ela se comporta, vejamos o que acontece com o cabelo com a utilização das lavagens mais difundidas do no poo:

Enxágue com bicarbonato de sódio

Conhecido como neutralizador de ácido e possui ação antifúngica ainda sem explicação de como o mecanismo funciona. Ele deixaria o cabelo com um toque suave e soltando os fios que poderiam ter aspecto oleoso. Com o pH de 9,  a bicarbonato abre a cutícula dos fios, aumentando a capacidade de absorção de água que, por sua vez, quebra as ligações de hidrogênio da queratina. O resultado é fragilidade e quebra das fibras.

Condicionamento com vinagre de maçã

O ácido acético tem um poder moderado de retirar resíduos do couro cabeludo e fecha as cutículas abertas pelo bicarbonato. Se diluído corretamente, seu pH de 3.1 a 5.48 pode atingir o pH natural do couro cabeludo. Se muito ácido e usado em cabelos quimicamente tratados, pode aumentar a fragilidade dos fios e aumentar processos inflamatórios.

Co-washing

Não causa nenhum dano, mas o poder de limpeza é muito baixo, uma vez que esses produtos são formulados para adicionar substâncias no cabelo. Os shampoos 2 em 1 são indicados para uma limpeza suave porque possuem agentes com polaridade para interagir com a sujeira e também criar filmes protetores temporários.

A questão da diluição e o PH

A técnica é feita com diluição em água, mas quem tem aquário sabe que pH é um drama na vida. Para saber o pH correto da água do aquário, é necessário também medir a temperatura porque ela altera o resultado. Caso seja necessário, pouco produto alcalino (básico) ou ácido já é suficiente.

Claro que nesse caso, o cuidado é com os bichinhos e o equilíbrio de um ecossistema mais complexo (talvez) do que nosso couro cabeludo, mas para quem sempre matava os peixinhos que pegou na festa junina, segue um vídeo interessante sobre o tema:

Demonizamos os sulfatos rápido demais?

Os sulfatos são um tipo de surfactante tendo o lauryl sulfato de sódio o maior vilão. Estudos científicos classificando a substância como cancerígena podem ter chegado ao público leigo com falhas de interpretação. As circunstâncias pelas quais os experimentos atingiram resultados negativos à saúde dependem da exposição contínua e em maior concentração do que a utilização casual dos shampoos. O lauryl sulfato de sódio também é usado como meio de teste para substâncias cancerígenas como o 1,4-dioxano, classificado como possível risco para humanos (grupo 2B) pela Agência Internacional de Pesquisa do Câncer.

O sulfato pode ser natural ou sintético. Para ambas procedências, é biodegradável e tem baixa taxa de acúmulo no corpo. Por serem altamente solúveis em água, possuem potente poder de limpeza. Por isso, são usados em shampoos para pessoas que acumulam muita sujeira e sebo ou utilizam muitas produtos modeladores.

Concluímos que…

As lavagens com bicarbonato e vinagre alteram a textura dos cabelos porque atingem a cutícula dos fios, não necessariamente removem o sebo e a sujeira. Também entendemos que não é por ter um nome químico que a substância não é biodegradável e nociva ao uso. Claro que relativizando a situação levando em consideração a escala global de produção de resíduos.

Ou seja, talvez o maior objetivo do no poo ou low poo seja questionar a necessidade de lavagem excessiva dos cabelos e os resíduos produzidos, independente do tipo de surfactante. É importante encontrar o equilíbrio da quantidade de lavagens para uma rotina capilar saudável com o mínimo de recursos.

Lembrando que as receitas milenares de sabão são eficientes para limpar os cabelos de forma delicada. Mesmo com cabelo oleoso, uso o sabão de azeite de oliva duas vezes por semana (uso o mesmo para o corpo). A produção é local, artesanal e sem embalagem.

Existe uma oportunidade de marketing para as tendências “verdes” e “contra-cultura” que pode ser mais do mesmo em relação ao status-quo. Produto natural e vegano nem sempre é sinônimo de responsabilidade ambiental e social, mas isso deixo para um outro post.

Conteúdo Extra

O canal de divulgação científica Nunca vi um Cientista fez dois ótimos vídeos sobre o tema, caso você queria um pouco mais de aprofundamento sobre para que serve alguns componentes comuns do shampoo. Tudo com evidência científica do jeitinho que a gente gosta:

Ingredientes do shampoo
Low-poo e no-poo

Fontes: